Percepção e ilusão da imagem.
Autor: Eduardo Ariel.
O filósofo grego Platão (428-348 a.C.) concebeu a alegoria mais famosa sobre o caráter ilusório da realidade. No seu mito da caverna, ele nos conta a história de prisioneiros acorrentados no interior de uma caverna, olhando para uma de suas paredes. Tudo o que podiam ver e ouvir eram as sombras, projetadas nessa parede, de objetos carregados por aqueles que passavam às suas costas, à frente de uma grande fogueira, e os ecos dos ruídos que produziam. Tendo permanecido na caverna por toda a vida, esses prisioneiros tomavam as sombras pelos objetos reais, pela própria realidade. Ao conseguir livrar-se dos grilhões, sair da caverna e ver o mundo lá fora, um deles percebe a grande ilusão a que ele e seus companheiros estavam submetidos.
Um dos objetivos de Platão com essa metáfora foi mostrar as limitações da realidade perceptiva impostas pelos nossos sentidos. Na verdade, aquilo que se pode perceber, conhecer ou vivenciar depende não só da realidade com a qual se lida, mas dos recursos de dispostos para isso: os órgãos sensoriais e o sistema nervoso. Por isso, a percepção da realidade é sempre mediada. Acima de tudo, os seres humanos são capazes de enxergar apenas uma estreita faixa do espectro eletromagnético, que chamamos de luz.
A descrição do processo ótico, conforme os físicos, é bem conhecida. A luz é emitida ou refletida por objetos. As lentes dos olhos projetam as imagens deles nas retinas que transmitem ao cérebro. Decerto, o mundo das imagens parece não se contentar com isso, ao olhar para uma figura se busca alcançá-la. Platão afirma no Timeu que o fogo ameno que aquece o corpo humano emana por meio dos olhos num fluxo suave e denso, estabelecendo uma ponte invisível entre o observador e a coisa observada. Por ela impulsos luminosos chegam aos olhos e, por conseguinte, a alma. Essa extensão que visa se conectar e se aproximar para Rodrigues (1998) diz respeito ao olhar. Sendo uma dimensão propriamente humana da visão, pois é ele que define a intencionalidade e a finalidade na relação com aquilo que é observado.
O ocidente medieval aprendeu com o maior estudioso árabe do assunto, Alhazen (965-1040), o papel do conhecimento e da inferência na percepção visual. O que esses antigos pensadores tentaram dizer é que não existe um estágio no processo perceptivo em que a observação é pura, destituída da participação do intelecto do observador. Toda observação é contaminada de conhecimento, de aprendizado e de hipóteses. Logo, a tentativa de separar o que realmente vemos e o que inferimos é uma empreitada fadada ao fracasso. Já George Berkeley (1685-1753) defendeu a idéia de que tudo o que possuímos são nossas percepções. Segundo o médico e físico alemão Hermann von Helmholtz (1821-1894), nossa percepção é construída por meio de inferências que inconscientemente fazemos sobre o mundo à nossa volta. Essas inferências são contrastadas com informações que o organismo colhe do ambiente. Cada vez que essas expectativas não são correspondidas, ajustamos nossos perceptos, criando novas inferências e testando novas conjecturas. A ideia de que nossa percepção se dê de maneira indireta, por meio de confirmações de expectativas, foi defendida por vários psicólogos do século XX, como Irving Rock (1922-1995) e Richard Gregory (1923-). Esses pesquisadores demonstraram experimentalmente a participação das expectativas do observador no processo perceptivo.
Para Arnheim (2019) somos herdeiros de uma situação cultural que, além de ser insatisfatória para a criação da arte, ainda encoraja o modo errado de considerá-la. Afinal, ocorre uma ação que negligencia o dom de compreender as coisas por meio dos sentidos. O conceito está divorciado do que se percebe e o pensamento se move entre abstrações, causando uma dicotomia entre o intelecto e o sentido. Muito se deve aos olhos terem sido reduzidos para instrumentos que identificam e medem; daí se sofre de uma carência de ideias exprimíveis em imagens e de uma capacidade de descobrir significado naquilo que é visto. Assim sendo, parece natural se sentir perdido na presença de objetos com sentido apenas para visão integrada e, por conseguinte, o refúgio advém do meio familiar das palavras. A capacidade inata para entender e se comunicar com o mundo por meio dos olhos está adormecida e deve ser despertada. Em adição, pode-se dizer que outros sentidos estão na mesma situação dormência.
A arte pode induzir a construção de expectativas que fazem com que a imaginação se precipite e complete o ciclo de eventos sem se dar conta em que momento foi ludibriada. A mágica vira arte nas mãos de um Chaplin, capaz de recriar pernas de um ágil dançarino com um par de garfos e dois pãezinhos. Pintores são hábeis em criar ilusões em que nossas expectativas são subjugadas em favor de sua arte. Uma famosa história de ilusão e arte, contada por Plínio (23-79 d.C.) em sua Historia Naturalis, ilustra isso com perfeição. Conta-se como Parrásio enganou Zêuxis, que pintava uvas tão convincentes que os pássaros as bicavam. Parrásio convidou Zêuxis a visitar seu ateliê para mostrar-lhe um de seus quadros; quando Zêuxis tentou afastar a cortina que escondia a tela, descobriu que a cortina era, ela mesma, uma pintura. Foi obrigado, assim, a reconhecer a arte do rival, capaz de enganar um outro artista.
A história da pintura confunde-se com essa aventura científico-filosófica que é a investigação de como representamos visualmente o mundo em que vivemos. Assim como acontece em nossa retina, um mundo dotado de três dimensões tem de ser representado numa tela bidimensional. Como percebeu o gênio renascentista Leonardo da Vinci (1452-1519), "a perspectiva nada mais é do que ver um lugar através de uma vidraça transparente, na superfície da qual os objetos que estão do outro lado deve ser desenhados". Um mestre em utilizar ilusões de perspectiva (entre outras) em sua arte foi o holandês M. C. Escher (1898-1972). Só quando analisamos os detalhes de suas obras é que percebemos os incríveis paradoxos antes ocultos pela beleza e harmonia do conjunto.
Reconhecer alguma coisa em uma imagem é identificar, pelos menos parte, o que nela é visto com alguma coisa que se vê ou se pode ver no real. Gombrich (2012) insiste no fato de que esse trabalho de reconhecimento se manifesta na própria medida em que se trata de reconhecer algo, apoiando-se na memória ou mais exatamente em uma reserva de formas de objetos e de arranjos espaciais memorizados. Com isso, a constância perceptiva é a comparação incessante que fazemos entre o que vemos e o que já tivemos. Acima de tudo, Rodrigues (1998) destaca que é importante observar que tanto lembranças quanto previsões são substancialmente a mesma coisa, simples imagens.
De acordo com Arnheim (2019), no ensaio que deu à teoria da Gestalt seu nome, Chistian von Ehrenfels demonstrou que se doze observadores escutassem cada um dos tons de uma melodia, a soma de suas experiências não corresponderia à experiência de alguém que a ouvisse inteira. Muitas das experiências posteriores dos teóricos da Gestalt propuseram-se a demonstrar que a aparência de qualquer elemento depende de seu lugar e de sua função num padrão total. Ver algo implica determinar-lhe um lugar no todo: uma localização no espaço, uma posição na escala de tamanho, claridade ou distância. A experiência visual é dinâmica e totalizante. Ela é, antes de tudo, uma interação de tensões dirigidas. Estas não constituem algo que o observador acrescenta, por razões próprias, afinal derivam de imagens estáticas. Antes, estas tensões são inerentes a qualquer percepção como tamanho, configuração, localização ou cor. Uma vez que as tensões possuem magnitude e direção pode-se descrevê-las como “forças” psicológicas. De mesmo modo, numa melodia pode-se “ouvir” por indução a medida regular da qual um tom sincopado se desvia, tal qual como um círculo levemente deslocado para o vértice superior direito de um quadrado provoca sentimento semelhante.
O observador vê as atrações e repulsões nos padrões visuais como propriedades genuínas dos próprios objetivos percebidos. Ele não pode distinguir melhor uma veracidade do sonho, da alucinação partindo da realidade das coisas fisicamente existentes por mera observação. Para tanto, carece da faculdade imaginativa para tornar percepção e arte em artefatos reais. Assim, se escolhe ou não chamar estas forças perceptivas de “ilusões”. O artista por exemplo, não precisa preocupar-se pelo fato destas forças estarem contidas no pigmento na tela, pois o que ele cria com materiais físicos são experiências. A obra de arte é a imagem que se percebe, não a tinta. Se uma parede parece vertical num quadro, ela é vertical.
A noção de imaginário manifesta claramente esse encontro entre duas concepções da imagística mental, que está relacionada com a faculdade ou poder de imaginação, de invenção e de fantasia. No sentido corrente da palavra, segundo Rodrigues (1998) o imaginário é o domínio da imaginação, compreendida como faculdade criativa, produtora de imagens interiores eventualmente exteriorizáveis. Praticamente é sinônimo de "fictício", de "inventado", o oposto real (até mesmo às vezes ao realista). Nesse sentido banal, a imagem representativa mostra um mundo imaginário.
Por conta do que fora apresentado até aqui pode-se assumir que os artistas são sensíveis aos conceitos relacionais das formas visuais, especialmente como o círculo sofre influência das bordas e do centro, mas também da estrutura em cruz formada pelos eixos vertical, horizontal e pelas diagonais. Um exemplo seria o “quadrado branco sobre fundo branco” do artista Kazimir Malevich de 1918. De início, é de extrema importância entender o contexto no qual esta obra está inserida. O final do século XIX e início do século XX foi o momento no qual a arte sofreu um processo de mudança e de revolução, diversas correntes artísticas coexistiam, com artistas escrevendo manifestos dispares em sentido, já que algumas delas eram totalmente opostas entre si. Em meio à fauvistas, cubistas, futuristas e tantos outros que já se distanciavam bastante da cópia do mundo real, surge a abstração. Por sua vez, ela possuía duas vertentes: uma delas, liderada por Vassily Kandinsky, com cores e formas fluidas sobre a tela, na intenção de expressar uma visão espiritual da arte. Mondrian e Malevich apresentando outra que primava pelo total distanciamento das formas da figuração, e, para eles, o quadrado era a perfeita expressão da não imitação da natureza, dado que os ângulos agudos não existem nela. A partir dessa forma de base, conseguiam-se todas as outras: o círculo, através da rotação do quadrado, a linha e o retângulo, com seu prolongamento, o triângulo ao dividi-lo, a cruz com a junção de vários deles etc. Uma das obras mais célebres de Malevich foi o “quadrado negro sobre fundo branco” de 1915, sendo a pintura mais conhecida do suprematismo, corrente inaugurada por Malevitch, na qual se valoriza a supremacia do sentimento ou percepção pura nas artes picturais.
Ao adentrar o terreno da arte em questão, também parece razoável pensar que a obra intitulada “quadrado branco sobre fundo branco” pode ser vista como uma interface para evocar todas as possibilidades da pintura sobre uma tela branca, ou seja, a própria essência da criação a partir do nada. Em adição, o sentido aglutinado na tela possui certo espiritualismo. Afinal, o próprio Malevich, assim como vários outros artistas da abstração, possuía influências teológicas e as usavam para explicar temas e approaches conceituais. Assim, o artista explicita que a tela evoca todo um rol de possibilidades de comunicação com o absoluto, junto com a criação de um novo mundo ligado ao espiritual, ao invés de ser um simples vazio pictural e material.
Muitos dos conceitos formulados acima conotam aspectos psicológicos e físicos que influenciam a percepção por conta da estabilidade, da atração, da repulsão ou do repouso – seja em relação ao posicionamento, estrutura e configuração das formas presentes na obra. Kandinsky (1913) apud Wick (1998) em uma de suas monografias na Bauhaus elaborou uma teoria de cores pautada em contrastes e pares (quente-claro, quente-escuro, frio-claro, frio-escuro). Para ele a cor está sempre ligada à forma, chegando até a configurá-la. Nesse sentido, sua teoria da forma emerge do ponto e da linha, tendo no primeiro seu componente intrinsicamente menor. Muitas de suas reflexões de tensionamento e de ângulos são originárias do mundo animal e vegetal, bem como da história da arte. Assim sendo, não é raro ter designers, arquitetos, cineastas, criativos e artistas lançando mão dessas estratégias de comunicação visual para contar uma história, direcionar o olhar do espectador/ leitor ou vincular elementos com sentidos sensoriais na interação com a obra projetual.
Outro aspecto relevante dos conceitos fundamentais das formas visuais advém do termo conceito. Para Arnheim (2019) ele tem a intenção de sugerir uma similaridade notável entre atividades elementares dos sentidos e as mais elevadas do pensamento ou do raciocínio. Parece agora que os mesmos mecanismos operam tanto no nível perceptivo como no intelectual, de modo que termos como conceito, julgamento, lógica, abstração, conclusão e computação são necessários para descrever o trabalho dos sentidos. O pensamento psicológico recente encoraja a considerar a visão como uma atividade criadora da mente humana. A percepção realiza ao nível sensório o que o domínio do raciocínio conhece como entendimento. O ato de ver de toda pessoa antecipa de um modo modesto a capacidade, tão admirada no artista de produzir padrões que validamente interpretam a experiência por meio da forma organizada – mesmo que seja em seu mundo tácito. O ver, em tese, é compreender.
Para exemplificar efeitos sensoriais decorrentes do uso de conceitos perceptivos (configuração, equilíbrio, peso, direção, espaço, luz, cor, movimento, dinâmica e expressão) lembra-se de alguns artistas importantes na história da arte. Na obra abstracionista de Lygia Clark (espaço Modulado – 1957) a inquietação do retângulo escuro, executando uma força expansiva nos triângulos para ganhar liberdade parece real. Em 2009, o Masp fez uma das mais completas exposições do artista Vik Muniz, onde se pode acessar a antológica pintura da Monalisa (de Leonardo da Vinci) e de Che Guevara com geleia e pasta de amendoim. Já a Medusa Marinara consiste em um desenho feito com espaguete o qual faz referência à medusa de Caravaggio (1590). Por último, o artista digital Refik Anadol reside na encruzilhada da arte, ciência e tecnologia. Suas esculturas e pinturas de dados tridimensionais são performances audiovisuais que oferecem ao público uma nova perspectiva e narrativa sobre como seria o sonho das máquinas e dos computadores.
Em adição, Santaella (2010) versa sobre o hibridismo das formas que pode levar o fruidor ao sentido da ilusão. O desenvolvimento dos meios de impressão gráfica vem se entremeado com imagens em combinatórias das mais variadas vertentes, enunciando segundas representações pictóricas. De meados do século XX para cá, a era das mediações computacionais e o remarcável crescimento da complexidade de processamento, especialmente de imagens, atualmente colocam os artistas em um estágio avançado em termos potenciais de tradução da informação ou contrainformação em imagem. Tais vertentes se dão pela mutação radical nos processos de produção da imagem provocada pela infografia, onde muito se distancia da imagem ótica – vinculada com o sentido da câmera escura, a perspectiva monocular e brunelleschiana de Brunelleschi (1377-1446) no Proto-Renascimento.
As ilusões não são "erros" da percepção, mas algo que resulta dos íntimos e cotidianos mecanismos de construção de um percepto. Na verdade, muitas vezes nossa percepção de espaço e tempo deixa levar-se, espontaneamente, por vívidas ilusões de forma, profundidade, cor e movimento, embrulhadas em emoções também ilusórias de medo, raiva ou compaixão. E para tanto, basta irmos ao cinema.
Por fim, resumindo, da mesma forma que não se pode descrever um organismo vivo por um relatório de sua anatomia, também não se pode descrever a natureza de uma experiência visual em termos de centímetros de tamanho e distância, graus de ângulo ou comprimentos de onda de cor. Estas medições estáticas definem apenas o estímulo, isto é, a mensagem que o mundo físico envia para os olhos em um processo dialógico com o repertório íntimo do interator. Mas a vida daquilo que se percebe - sua expressão e significado – deriva inteiramente da atividade das forças perceptivas. Qualquer linha desenhada em um papel ou forma modelada em argila, perturbam o repouso, mobilizando o espaço. O ver é a percepção da ação. Afinal, a imagem está em situação constante de mediação entre o actante e a realidade percebida.
Referências
ARNHEIM, R. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo, Cengage Learning: 2019.
BALDO, M. V.; HADADAD, H. Ilusões: o olho mágico da percepção. Braz. J. Psychiatry 25,Dez 2003.
BEIGUELMAN, G. Políticas da imagem (p. 2). Ubu Editora. Edição do Kindle: 2021.
GOMBRICH, E. H. Os Usos das Imagens: Estudos Sobre a Função Social da Arte e da Comunicação Visual. Porto Alegre: Bookman, 2012.
GOMBRICH, EH. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes; 1986.
HELMHOLTZ, H. V. Treatise on physiological optics. New York: Dover; 1867/1962.
PLATÃO. A República. Belém: EDUFPA; 2000.
Palmer SE. Vision science: photons to phenomenology. Cambridge: MIT Press; 1999.
RODRIGUES, C. A. Uma Investigação sobre o conceito de Virtual. Dissertação (Mestrado em Design) – Departamento de Artes & Design, PUC-RIO, 1998.
SANTAELLA, L. A ecologia da comunicação. Conectividade, mobilidade, ubiquidade. São Paulo: Paulus, 2010.
WICK, R. Pedagogia da Bauhus. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1989.
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