Conexões & interfaces entre campos do conhecimento
Autor: Eduardo Ariel
Em um primeiro momento, questões de Estética normalmente são relacionadas com teorias da arte, literárias ou ainda, ao estudo filosófico do Belo. Da sua polissemia de conceitos talvez se possa propor um nexo tensional para pensá-la sob uma perspectiva comunicacional. Desde os anos 1990 diversos autores vêm buscando por uma articulação da Estética com noções relativas à Comunicação, de modo a estabelecer uma nova dimensão norteadora que vá além da questão artística e sublinhe, por meio de uma perspectiva relacional. Assim sendo, dentro desta apropriação, é possível perceber um alargamento acerca da noção de “Estética” que, para além de sua vinculação específica com a arte, também passa a adquirir espaço e forma como um fenômeno estético – na forma de se pensar a comunicação humana, em seu jogo de sentidos, afetos, sensibilidades e inteligibilidades.
A “Estética na Comunicação” não se trata especificamente de abordar a dimensão estética presente nas produções midiáticas – o que não seria errado –, mas sim de pensar a Comunicação como uma abertura da estética dentro das possibilidades proposicionais de estabelecimento de vínculos interacionais, entendidos aqui a partir do delineamento que vem sendo proposto nos últimos anos por Marcondes Filho (2010, 2012), Braga (2010, 2011) e Ferrara (2013, 2014). Já Guimarães (2004), trabalha as possibilidades e os lugares da experiência estética dentro da Comunicação, com enfoque particular acerca do que tange questões da vida cotidiana. Diante disso, um ponto comum entre esses estudos seria o entendimento da Comunicação como um fenômeno ligado à sensibilidade, não necessariamente dependente de um meio técnico – embora a própria concepção de “meio” ou “meio técnico” seja passível de discussão – para sua efetivação, como uma ligação entre seres humanos sem a qual não se estabelece um vínculo comunicacional.
Em suas utilizações na Grécia antiga, a noção de aisthesis não estava originalmente ligada ao campo da Arte. Muito pelo contrário, a Arte era ligada à techné, o domínio de uma “capacidade de fazer” vinculada a um sujeito realizador, algo que hoje criaria um campo semântico comum entre “técnica” e “habilidade”. A tradução latina de techné ars, ainda hoje ecoa na expressão “a arte de fazer algo”. Acompanhando seus desdobramentos semânticos propostos nos estudos lexicográficos de Peters (1983), Gobry (2010) e Magnavacca (2005), percebe-se uma considerável complexidade de elementos de sentidos do termo, e a argumentação que se segue é caudatária desses autores. De fato, é possível observar, ao menos em Platão, as discussões sobre o “belo” não estão associadas à sua percepção física, mas sim à sua rigorosa interpretação enquanto ideia. Em função disso, formula-se que esteja menos ainda ligada a uma apreensão sensível do que quer que seja. Neste primeiro momento, mais do que a um desdobramento vinculado ao “belo”, o domínio do estético vinculava-se à fisiologia da percepção sensível. O sentido mais próximo, no caso, seria o da mimesis, da imitação produtiva, mas não necessariamente de uma apropriação vinculada à sensibilidade em relação ao “belo” ou, em termos contemporâneos, à capacidade de apreciar uma obra de arte (LIMA, L. C., 1983, 1998). Logo, parecia existir uma dimensão cotidiana da estética, mesmo longe de se tratar de um momento de fruição que irrompe no cotidiano. Decerto, para Schaeffer (2000) o fenômeno estético seria parte do conjunto de ações cotidianas vinculadas aos sentidos do componente relacional e comunicativo do cotidiano.
Em adição, Santaella (2010) apresenta um alargamento ao revisitar sua origem, tomando a palavra “estética” no sentido que lhe foi dado por seu fundador Alexander Gottlieb Baumgarten (1741-1762), em 1735, no texto denominado “Reflexões filosóficas sobre algumas questões pertencentes à poesia”, em que ela foi definida como a ciência da percepção geral. Na sua obra posterior, “Aesthetica”, essa ciência da percepção foi tomada como sinônimo de conhecimento através dos sentidos, a “perfeita cognição sensitiva” que encontra na beleza o seu objeto próprio (Cohen e Cuyer, 1982). Portanto, a Estética significa sentir, não com o coração ou com os sentimentos, mas com os sentidos, tida como rede de percepções físicas. Assim, ela não se restringe ao que passou a se entender pela palavra arte (“arte do belo”, “belas artes”), mas reporta-se ao conhecimento da estesia voltada para o estudo de uma gnoselogia da sensação ou da percepção sensível, irredutível ao saber lógico.
Em consonância Sá Martino (2015), tangenciando esta perspectiva, delineia-se um componente comunicacional, pois para ele a Estética é um processo eminentemente relacional. Ela acaba sendo responsável não apenas por uma simples percepção, mas sim como constituinte de uma das etapas do movimento de intelecção que se processa nos sentidos e no exterior da mente – e que também estão os processos intelectivos responsáveis pelas “formas”, o eidos. Desta forma, a aisthesis é uma parte fundamental para o conhecimento, na medida em que não parece ser apenas um elemento canalizador do mundo exterior para a mente intelectiva, mas também um elemento mediador da relação entre a mente e a realidade. Assim, a experiência estética, longe de se constituir como um momento inicial separado da intelecção, se determina como indissociável da própria experiência intelectual à qual confere uma de suas dimensões – um tipo de dado que não se submete ao logos, mas parece caminhar ao seu lado e, em alguns momentos, até mesmo se opor a ele.
Os medievais traduziram “aisthesis” por “sensus”, conservando nessa opção algumas das pluralidades de alcance semântico do original grego. A noção de “sensus” se refere ao que pode ser “sentido”, entretanto há uma ambivalência da palavra que se desdobra em “sentir”, de um lado e “significar”, de outro. A linguagem cotidiana guarda isso como “fazer sentido”. No conhecimento, o aspecto propriamente físico na visão de “sentir” como “sensação”, completa-se com a operação mental do “sentido” como “significado”, o “fazer sentido”, atribuindo valor inteligível àquilo que, no encontro com o objeto, a potência do sentido transformou em ato. Magnavacca (2005), afirma que o “sensus” é responsável pela comunicação do ser humano com a realidade circundante e consigo mesmo.
A aisthesis enquanto ato de comunicação permite a interação entre grandezas anteriormente díspares, como a mente humana e a experiência sensível, onde acopla-se um juízo responsável por defini-la. A integração entre o pensamento abstrato e o pensamento sensível pode levar ao clímax conforme Martin-Barbero (2003) constatou em um novo paradigma de processamento da mente humana que refaz as relações entre as ordens da inteligência e da sensibilidade. Afinal, é na mente que se formam os juízos, já no mundo exterior se dá o mapeamento interacional empírico. Assim, longe de ser um ato unidirecional no quais conteúdos exteriores são levados à consciência, a Estética, apesar de sua concepção inicial um pouco mais passiva enquanto elemento apenas de “percepção”, se revela como o centro de uma relação comunicacional. Da interseção ulterior dessas imagens resultantes, a partir de Kant (1964) o belo decorre tanto da forma como da finalidade em um objeto, na medida em que eles são percebidos nele independentemente da representação de um fim. Assim sendo, no caso do belo existe um padrão relacionado com finalidade em um objeto, um apreso intelectual incutido pela sua própria organização, ainda que não precise se tratar de uma peça utilitária.
A proposta de uma estética que possa estabelecer elos com o público além do vínculo propriamente indicial é amplamente discutida por diversos autores, como Forest (2006), Costa (1999) e Bourriaud (2001). É possível perceber a discussão acerca das qualidades da obra de arte no estabelecimento de relações de “comunicação” com um público como um ponto comum para a origem de suas respectivas propostas. Dando conta de uma contribuição ao pressuposto presente aqui, em um texto intitulado “A Estética da Recepção e a Crítica da Razão Impura”, Maria Tereza Cruz (1986) explicita um contraponto ao questionar em que medida a expressão não é redundante, na medida em que em um primeiro momento o termo “Estética” faz referência a um fenômeno ligado ao ato da percepção. Assim, o momento estético poderia também ocorrer no instante da recepção.
O termo “Estética da Recepção” é oriundo da Literatura, sendo o primeiro espaço acadêmico a deslocar o foco de análise para o momento do encontro entre o leitor e a obra literária. Aqui o princípio fundamental explicitava que a experiência da arte não se encerrava na obra, mas na relação entre o objeto e sua contemplação. A sensibilidade – um dos sentidos do grego aisthesis, daí de onde “estética” se origina – do leitor ou leitora era fruto da apreensão da leitura como uma produção de consciência. Também adicionando outros componentes do sistema comunicacional, Hans Robert Jauss (2002), que propõe que “a experiência primária de uma obra de arte realiza-se na sintonia com seu efeito estético. Isto é, na compreensão fruidora e na fruição compreensiva.” Enquanto Guattari (2019) enuncia o elo da discursividades como elemento engajador das partes (criador, intérprete, apreciador e fruidor). Assim sendo, o sentido da mensagem se trata de uma complexa negociação entre emissores e receptores, sendo que ambos estão mergulhados dentro do mesmo universo de significados.
Schaeffer (2000) adota um posicionamento mais radical no que tange à proposição do fenômeno estético para além da questão das obras de arte, indicando a possibilidade de se pensar a estética nas linguagens utilizadas no cotidiano, em particular àquelas vinculadas às mídias. Ademais, o tema da “Estética dos Meios” ou “Estética da Cultura de Massa” poderia ter uma considerável genealogia importante traçada desde McLuhan (2008) até Jenkins (2006). Já Caune (1997) trabalha o sentido da estética como uma parte do fenômeno comunicacional, evidenciando o seu aspecto relacional indissociável da Comunicação. Ao fazer isso em perspectiva, se diminui tanto os “efeitos” da mídia como da “teoria do meio” ou do “significado”. Sendo assim, se reivindica o ato comunicacional como agente dessas inter-relações.
De certo modo, tal prisma da relação ganha força quando se pensa em uma “Estética da Comunicação” desenvolvida a partir de uma “Estética da Recepção” responsável por trabalhar o sentido da criatividade propriamente envolvida no ato estético. Afinal, a palavra “comunicação”, traçada em uma de suas origens, parece se referir ao grego koinos, “aquilo que é comum”. A expressão aisthesis koinos, mencionada por Peters (1983) e Gobry (2010), refere-se aquilo que seria um “entendimento comum” ou uma “percepção comum”, no sentido de algo que pertence a todos. Segundo Sá Martino (2015), a ideia do koinos, “o elemento comum”, refere-se a um campo semântico em princípio distante de qualquer acepção que correlacione “comum” e “vulgar”. No caso, trata de algo que é comum e compartilhado, isto é, presente em dois espaços ao mesmo tempo ou que pertence em duas instâncias simultaneamente. O “comum”, neste aspecto, poderia ser interpretado como o elemento propriamente dito de constituição de um espaço relacional. Para Sá Martino (2016) ao estabelecer um princípio de relação no sentido da Estética, abre-se a perspectiva de pensá-la como algo comum entre os dois termos – o comum, do latim communis, está próximo das relações de comunicação.
A dimensão comunicativa do sentir compartilhado, ou do sentir em comunidade, a do aisthesis koiné, revela-se da mesma forma quando se pensa nas condições da temporalidade do ato comunicacional. O “modo de ver” da Renascença difere fundamentalmente daquele da pessoa na Idade Média, assim como do indivíduo mediado pelos ambientes digitais contemporâneos, como é possível ver em Baxandall (1988), Berg (2009) ou mesmo Jenkins (2006). Ackerman (2000) mostra como a história dos sentidos é parte inseparável do conjunto da história humana em sua relação com o ambiente que o cerca e, principalmente com a as possibilidades de mudar esse ambiente – na mesma proporção em que se poderia falar de uma mudança, de igual teor, na própria percepção estética.
Por fim, procurou-se trabalhar o fenômeno estético como uma parte indissociável do ato comunicacional independentemente do aspecto propriamente midiático no qual ele eventualmente possa encontrar sua objetivação. Nesta perspectiva, pensar em uma Estética da Comunicação não significa trabalhar em termos da concepção da palavra relacionada à arte ou, especificamente, aos critérios de constituição de beleza, talvez nem mesmo ao momento do encontro entre uma “obra” e o sujeito, mas na relação que se forma no encontro entre subjetividades, seus conhecimentos e seus afetos, mediados por um mundo cotidiano com o qual estão em constante interação. Desse modo, o componente relacional e perceptual da ligação entre os sujeitos em um contínuo social ganha relevância dialógica para formação dos sentidos.
Referências
ACKERMAN, M. A natural history of the senses. Londres: Phoenix, 2000.
BAXANDALL, M. Painting and Experience in 15th Century Italy. Oxford: OUP, 1988.
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