Discussões metodológicas e epistemológicas
Autor: Eduardo Ariel

A Comunicação parece possuir muitos intermeios discretos que explicitam, conforme Canclini (2019), mudanças no modo de falar sobre identidade, diferença, desigualdade e multiculturalismo. Flusser (2017) elabora uma construção em torno dela que visa dar conta das materializações e elaborações vindas da área. Para ele são processos de codificação decorrentes de códigos, de artefatos e de experiências. O envolto complexo não se restringe aos métodos e técnicas de pesquisa, mas invade também todos os setores relacionados com o campo profissional, social e político da disciplina. Disso tudo, uma ecologia plural das práticas contemporâneas fertiliza o terreno de forma assíncrona, combinando e reconfigurando tônicas vigentes. Com isso, inicialmente, se manifesta um binômio (necessidade e competências em informação) advindo do campo de pesquisa, promovendo uma série de debates a cerca de novas habilidades e saberes que precisam ser fomentados.
Talvez por conta de tamanha complexidade, tantas camadas e interseções, Araújo (2016) parta da premissa da pluri multidisciplinariedade para dar conta de tamanha efervescência fenomenológica. Já Morin (2005) e Bachelard (1968) lançam olhares sobre o paradigma da transdisciplinaridade por meio de nuâncias empíricas e teóricas que se mostram complementares, ao solicitarem apropriações e contextualizações metodológicas coerentes com o processo de construção dos objetos comunicacionais. Em outro estudo Lopes (1990) já havia constatado que os artefatos que compõem a práxis da comunicação são multidimensionais e complexos, exigindo dos pesquisadores operações de igual valência para apreendê-los, o que pode requerer a confluência de saberes multidisciplinares. Assim, torna-se necessário traçar um aprendizado de criação de novas sínteses disciplinares, transdisciplinares ou pós-disciplinas.
Para clarificar Nicolescu (2005), reforça esse sentido por meio das apropriações e convergências que sinalizam a pluralidade teórico-metodológica no conhecimento científico. Nessa direção, Morin (2000) propõe a reflexão acerca do paradigma da complexidade, acentuando a necessidade da religação dos saberes e criticando a disciplinaridade fechada. Há que se avaliar a essência da “circularidade” e os perigos da disjunção, pois uma disciplina ou um campo não são suficientes para reunir um dado conhecimento para todos os problemas que lhes dizem respeito. Prigogine e Stengers (1997) também defendem as travessias, enfatizando que se habita o mundo do diálogo entre as diversas ciências e a natureza, no qual realiza-se “experiências” de pensamento denominadas pelos autores de “alianças”. Desse modo, a ciência passa a ser entendida dentro da interligação derivada da exploração cognitiva. Sodré (2016) é exemplo emblemático de análises diversas sobre o campo, mostrando-se um pensador ativo das relações comunicacionais com a vida cultural ao instituir um olhar filosófico da comunicação como “Ciência do Comum”. Braga (2016) é outro teórico que também não ignora a interdisciplinaridade da área. Ele propõe o delineamento de seus objetos a partir da compreensão da comunicação como contexto de interações diversas que não só apontam para o consenso, como enaltece o debate e o tensionamento reflexivo como produtores de conhecimento. Fausto Neto (2016), por sua vez, propõe “trajetos de pensar em companhia” ao dialogar com o teórico do discurso Eliseu Veron.
Nessa perspectiva, de acordo com Lopes (2016) a reflexão a respeito do fazer científico vai direcionar novos procedimentos considerando-se, para tanto, as implicações socioculturais do objeto que se abrem às constantes transformações e adequações postas pelas condições de seu entorno. Como parece possível deduzir, esses olhares se cruzam com uma racionalidade aberta e sinalizam a valorização da alteridade do campo comunicacional à proporção que redimensionam o papel do “sujeito pesquisador”, exigindo reavaliações sobre o lugar de onde fala, seu habitus intelectual. Ademais, suas condições de produção, bem como a incorporação de escolhas e indícios que contornam sua subjetividade são esboços importantes de sua individualidade e domínio.
Em concordância, Araújo (2016) enfatiza o empírico e o teórico como faces complementares do fazer investigativo em qualquer campo do conhecimento, pois ambos compõem a dimensão constitutiva do processo de pesquisa. Hjarvard (2012), apontou alguns desenvolvimentos no campo da comunicação que até agora se apoiaram, demonstrando um relevante link semântico: a institucionalização acadêmica e a midiatização da cultura e da sociedade. Diversos fenômenos contemporâneos relacionados com mass media, se encontram nessa interseção. Assim sendo, dentre as inúmeras possibilidades de pesquisa pode-se citar os efeitos dos mass media e sua ação na construção da imagem social. Para tanto, muito dos seus efeitos foram atualizados desde o Transfermodell der Kommunukation (Schulz, 1982), onde os processos de comunicações eram tidos como assimétricos, individuais, intencionais e episódicos. Sendo assim, os efeitos foram revistos para mudanças de longo prazo, os casos singulares (p.ex. campanhas) assumiram um escopo mais global em áreas temáticas, o efeito cognitivo que implica no consumo das comunicações de massa se sobrepões aos valores e comportamentos atitudinais. Como resultante, segundo Noelle Neuman (1983) as metodologias de coleta de dados ganham em complexidade ao assumirem um caráter integrado, o quadro temporal se altera para evidenciar o sentido processual sedimentar da comunicação no tempo e, por último, se manifesta a vista interdisciplinar por conta da interação e da interdependência permanentes dos fatores no processo de influência no ecossistema comunicacional – seja para emissores ou receptores (destinatários).
Para Araújo (2016) a pesquisa em Comunicação exige uma construção ajustada às particularidades do seu objeto, sobretudo considerando as possíveis relações conceituais dele próprio. Maldonado (2006) salienta ainda que o método é uma instância intelectual que constrói caminhos, define planos, sistematizações, operacionalizações, pilotos, testes, explorações, observações, estratégias e táticas que, no âmbito científico, têm por objetivo produzir conhecimento sobre fenômenos do mundo social. De acordo com Bourdieu (2009), as pesquisas são teorias em atos, intervenções conscientes na realidade que somente se renovam quando superam o empirismo ingênuo: só se pode pensar corretamente através da análise de casos empíricos teoricamente construídos. Isso implica reconhecer que o objeto investigado não é dado pelo estudo do fenômeno, mas construído pelos pesquisadores num processo contínuo de tessitura, observação e objetivação, que se inicia pelo recorte do tema, passa pela definição do aporte metodológico até a seleção de técnicas apropriadas para a coleta de dados, caso seja necessário extrair parcelas de determinada realidade.
Diante dessa evidência, construir o objeto implica traçar um problema e mobilizar uma teoria capaz de fundamentá-lo: seja em pesquisas teóricas ou empíricas. Para Bachelard (1968), somente a observação da realidade não é suficiente para a construção do conhecimento científico. A compreensão do mundo concreto e empírico necessita, sobretudo, do pensamento e da teoria crítica para se fundamentar. Convém, portanto, não separar esses polos. Lopes (2010) postula que a teoria e o trabalho de campo podem, juntos, construir um ambiente fecundo capaz de viabilizar a práxis da investigação, mediante o teste das hipóteses norteadoras das nossas intenções e os seus respectivos projetos de descobertas. Qualquer que seja a ênfase do estudo proposto, a experiência do trabalho de campo sempre inclui a relação social posta pelo fenômeno e a observação criteriosa do real atreladas à concepção pessoal do pesquisador.
Segundo Braga (2011) se sabe que toda discussão teórica, epistemológica e metodológica é importante para a formação de uma “cultura de pesquisa”; e que a obtenção de um bom manejo são parte importante do programa pessoal de formação continuada de todo pesquisador. De tal aparato pode-se incluir a pesquisa empírica aqui. Ela não elimina – ao contrário, solicita – a boa reflexão teórica, proporciona, durante o próprio trabalho, a possibilidade do “exame espelhado” – justamente pelo tensionamento mútuo e pelas articulações que se possam fazer entre três elementos bem diferenciados que se apoiam e se cobram mutuamente: a construção e problematização do objeto; o trabalho de fundamentação teórica; e a ida à realidade para sua observação sistemática. Decerto, a pesquisa empírica, solicita uma efetiva observação sobre algum ângulo da realidade, apresentando perguntas sobre aspectos de uma determinada situação ou “objeto” e procurando respostas diretamente através de investigação sistematizada de elementos concretos.
Note-se que defender a pesquisa empírica não corresponde a uma visão unicista desta – que leve a proposições meramente descritivas, limitando a investigação a uma factualidade superficial ou “mecanicista”. Ao contrário, não se trata de eliminar ângulos interpretativos, de descartar insights, de fugir da construção conceitual ou da fundamentação que orienta o olhar sobre o objeto. Uma boa pesquisa elabora estas e outras démarches mais abstratas, alimentadas pelo conhecimento teórico crítico. Apenas, aciona estes elementos menos materiais submetendo-os ao crivo do enfrentamento das coisas. Não podem ser desenvolvidos e elaborados apenas com base em uma sabedoria verbal, argumentativa, especulativa e abstrata.
Em suma, a prática da pesquisa empírica como um locus da interdiscursividade transforma o pesquisador na medida em que ele adentra o espaço de pesquisado. Por conseguinte, pode-se perceber um abandono consensual de “metodologia” como aparato rígido, como “máquina formal” para processar neutradamente a investigação. Tais vertentes em um pesquisador iniciante ou em formação poderiam levá-los à perspectiva de que a aproximação do objeto pode ser menos rigorosa. Ao contrário, o abandono da injunção determinante do “a fazer” impõe maior atenção e cuidados quanto ao “em fazendo”. Nessa perspectiva, a metodologia é uma sabedoria na tomada de decisões em que o pesquisador se vê constantemente envolvido. Daí a necessidade de passar do estudo do social para o estudo dos coletivos e, consequentemente, da sociologia para as ciências das associações.
O pensamento norteador da pesquisa poderia estar relacionado com a teoria crítica, onde o seu cerne prediz preceitos emancipatórios. Ela busca criar uma sociedade racional e livre, que atenda as necessidades de todos. Seu objetivo visa revelar como a sociedade contemporânea capitalista manipula e domina a Economia e a Cultura. Isso significa que o pensamento científico visa ser libertador, seja para o pesquisador e todos aqueles com acesso ao material produzido. Afinal, conhecimento é poder.
Por fim, muitas das grandes revoluções do campo científico tiveram ancoragem no âmbito do conhecimento humano, na interdisciplinaridade, no aspecto empírico que reflete e serve como reflexo da sociedade. Assim sendo, a ciência, antes de tudo, como lembra Bourdieu (2009) tem a meta de melhorar a vida das pessoas e tornar o mundo um lugar mais adequado para se viver. Desse modo, a pesquisa em Comunicação precisa ser situada num contexto que privilegie sua contribuição para os indivíduos e a humanidade como um todo. Dar sequência em uma tradição história e cultivar essas capacidades são desafios importantes dos estudos universitários de comunicação, especialmente quando se olha para as próximas gerações de pesquisadore(a)s.
Referências
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